terça-feira, maio 31, 2005

Dia

As tardes de Isolda eram sempre leves. Fazia as compras do dia. Gostava de todas as verduras frescas, de toda a comida bem preparada. Visitava os amigos que não estivessem trabalhando, ia na casa de Janaí­na deixar algum bilhete em sua porta. Ligva pros antigos amores, que insistia em manter como amigos. Lixava as unhas. Observava as janelas dos prédios baixos da cidade. Andava de carro para lá e para cá, só para passear. Comprava uma cerveja, tomava sozinha em baixo de uma árvore. Voltava para casa, fazia uma comida qualquer. Esperava Marcelo chegar, comiam. Deitavam-se. Passavam um bom tempo juntos. Ela contava as novidades, quais as flroes novas do parque. Ele falava sobre o dia na universidade, sobre os alunos, sobre o tédio, sobre filosofia. Muito sobre o tédio. Isolda não sentia tédio. Nem angústia, nem marasmo. Isolda contava sobre a cerveja nova que havia provado, sobre a poesia nova na porta da Janaí­na, sobre a ligação de Izolita. Isolda era leve, e não se preocupava com o tédio. Ir daqui para ali era sempre uma aventura. Sempre o primeiro dia do resto de sua vida. Ou o último.
Às nove, Isolda levantava-se, dizia a Marcelo 'tenho que ir', ele chorava lágrimas miúdas, reclamava baixinho 'por quê?', mas Isolda continuava seu ritual. Colocava uma roupa bonita, uma saia preta, no joelho, para não ser vulgar, blusa decotada, prendia os cabelos, nunca pintava os olhos, e enfrentava a noite que vinha pela frente. A vida era miserável no começo, mas foi a escolha. Marcelo sofria. Isolda não. Ia leve pelas ruas, entrava no bordel, passava um batom escuro. E estaria em casa na próxima manhã.

Bilhetes

"Hoje é sexta. Há mais de um mês não dormimos juntos. Mais de um mês que eu não me aconchego no seu peito e você não se entrelaça em minhas pernas. O que aconteceu conosco, Izolita? Esqueceu de mim? Desistiu?
Eu te amo!
Pedro."

"Eu nunca tive nada com você para desistir. Um dia qualquer, pode ser, aconchegaremos nossas dores, cada um num lado da cama, e acordaremos lado a lado, como há um mês. Eu poderia dizer que eu te amo também, mas seria mentira. Eu não acredito em amor.
Izolita"

segunda-feira, maio 30, 2005

Janaína e a rodoviária

Janaína sentou-se no seu banco predileto, com seu café preto bem forte, e ficou olhando o movimento. Sabia que Izolita devia estar em algum canto daquela mesma rodoviária, mas decidiu não ir procurá-la. Hoje iria ficar olhando seu amor, aquele menino lindo, que há muito foi-se de sua vida, mas que continuava a trabalhar, por escolha, na velha lanchonete, na frente dos ônibus para uma cidade aleatória.
Janaína tomou seu café, pegou o bloquinho de notas, escreveu um poema pequeno, rasgou o papel, dobrou e pediu a uma criança que passava que entregasse ao garoto da lanchonete. Ele recebeu com lágrimas nos olhos, olhou para Janaí­na, sorriu um sorriso brando, e voltou a trabalhar. Não havia, para ele, mais jeito de voltar atrás com o que já tinha sido. Todas as semanas Janaí­na lhe enviava poemas, bilhetes, daquele mesmo jeito, sentada no banco em frente à lanchonete. Ele, que há muito não tinha todo esse amor por Janaí­na, recebia os poemas, guardava com cuidado, e guardava-os em uma gaveta grande, cheio de lembranças dos dois.
Janaí­na sorriu de volta, um sorriso amoroso, desses que ele sabia que só ela iria dar a ele, levantou, pegou sua bolsa jeans com flores rosas e foi-se embora. Pegou o ônibus e deixou pra trás, ali, seu rapaz.

sábado, maio 28, 2005

Telefonema

'não, não quero, não te amo. passo uma noite, não uma semana.'
e assim foi Izolita, repetindo, repetindo repetindo até chegar em casa. pegou o telefone, com os olhos transbordando, e ligou: 'isolda! o que eu faço? não quero. não o amo. não posso. ele vai se machucar. eu vou me machucar. ele me ama, eu só mando bilhetes. quero todas as minhas roupas no meu varal. não no dele. isolda, isolda! você é casada! o que é que eu faço para não magoar pedro?'
Isolda, ainda com sono, respondeu: 'você deixa suas roupas na casa de todas as pessoas, de todas as pessoas que detesta, e retorna para buscar. com pedro, só deixa bilhetes de despedida, guardanapos com telefones novos, endereços de email, nunca responde as cartas. mas, no final, é sempre na cama dele que acaba, sempre com os poemas dele que decora a sua casa. izolita, meu bem, não tem como não o magoar. você vai falar que não vai morar, e vai sumir mais um mês, sua caixa do correio vai se encher, e você vai aparecer na casa dele, cozinhar uma comida qualquer, fazê-lo se apaixonar e desaparecer.' 'eu não o amo, isolda' 'acho que ama, mas escolhe a falta.'
isolda, sem se despedir, como sempre, desligou o telefone, e voltou ao seu sono leve, com castelos e princesas, e flores.
izolita, desesperada, com uma tristeza enorme: 'como assim, escolho a falta?' tirou sua roupa amarrotada, ligou pro serviço 'carlos, hoje eu não vou trabalhar aí­, tá? faço meus relatórios em casa, não tou bem. não tou mesmo. não sinto meu braço. logo devo estar melhor.'
entrou no banho, e pensou em ligar para pedro, saber como ele estava, falar do acontecimento, da dor repentina no peito, dar o endereço de sua casa. mas desistiu fácil 'de que adianta insistir em algo que eu não quero? que eu abandono todas as manhãs?'
deitou em baixo da água do chuveiro, que escorria lenta e lembrou-se de Janaí­na. Há muito ela não aparecia. ou estava amando ou sofrendo, para sumir daquele jeito. 'ligarei amanhã, ou depois. ela sempre me incomoda com esse papo de amor. e eu sequer entendo o que ela fala.'

Isolda

Isolda entrou em casa pela manhã, exausta da noite. Marcelo olhou-a com cara de desgraça, pegou a bolsa do ombro de sua esposa, e aconchegou-a no sofá. Perguntou o que tinha acontecido, ela evitou, com um sorriso bobo, 'a mesma coisa de sempre, meu bem, não sei porque você se preocupa, foi assim que me conheceu'. Ele, ainda com o olhar fixo, como o de todas as manhãs, falou a ela que por isso pergunta 'porque eu não quero te perder'... 'eu conheci você, não conheço todos os caras, todas as bocas, todos os sexos que me passam pela frente'.... 'às vezes, meu bem, a gente não conehce quem quer'. 'às vezes, meu bem, a gente só conhece alguém quando quer!'.
Isolda levantou-se, foi até a cozinha, pegou uma lata de coca-cola, voltou a sala, deu um beijo em marcelo. 'tomarei banho, quando você voltar, deitamos.' Marcelo levantou-se, abraçou Isolda com carinhoe foi dar sua aula. Isolda entrou no abnho, apagou as marcas da noite, tirou a maquiagem pesada, borrada, reparou que havia quebrado a unha em um apartamento qualquer. Sorriu, sem graça 'se alguém morrer lá, acharão que eu fui a assassina.' terminou seu banho rápido e foi dormir seu sono fraco, porém tranquilo, daqueles de quem não se preocupa. Dormiu pouco, e o telefone tocou: 'isolda!' 'que é, izolita?' 'pedro quer que eu more com ele. não sei o que falar sem magoá-lo' 'ah, meu bem, não se preocupe. você sempre o magoa. deixa de lembrança somente bilhetes, sequer esquece uma roupa. só acho, querida, que algum dia, não haverá mais pedro, e em um outro dia, mais ninguém.' 'eu não o amo.' 'acho que ama. mas escolhe a falta!'

sexta-feira, maio 27, 2005

Monólogos de Virgí­nia

Meus vestidos de chita estão secando no varal. Eu os lavei e os continuo usando porque me dão um ar interiorano que muito me apraz. Gosto de pensar nos seios fartos debaixo do decote ousado do vestido branco, gosto da inocência presente no desamarrar das fitas dos cabelos, dos vestidos, das anáguas. Lembro-me da primeira vez que o usei, na praia, e ventava como nunca. Eu tinha um olhar moço e me jogava nos braços de algum grande único amor qualquer. Para mim, porque tudo não passou de um delí­rio, do qual só restou esse sentimento de submissão que esmaga minha maturidade urbana. Lavei os meus vestidos de chita e eles ainda têm o cheiro bom do amaciante que eu não uso. De todos os corpos que passaram pelo meu é ainda aquele cheiro que persiste. Meus olhos são claros demais, acho que talvez seja do oceano que abandonei em você há um tempo atrás. Tenho os olhos de mar e os cabelos de sol, não é isso? Mas também é minha a solidão de um dia frio na praia. Eu bem podia me esvair na rodoviária ao som de um samba qualquer, e quem sabe não encontrava uma Janaí­na sorridente pelos cantos que fingiria saber mais sobre o amor do que eu. E ela diria: "Virgí­nia!", e eu olharia para os lados em busca de uma explicação que não me foi dada. Eu queria ser uma Virgí­nia que já tivesse vindo pronta para não precisar me escrever em cada esquina. Mas meus vestidos de chita posuem manchas nossas que nunca vão sair. Hoje perdi meu mundo, vem, entra aqui e me leva para qualquer lugar. Conversa comigo, eu preciso te amar de novo e sempre, não me rejeita chorando seu nome. Queria ser Janaí­na para fingir que está tudo bem, mas sou Virgí­nia, meu amor! Você se entranha em mim que nem doença terminal, daquelas que a gente nem sabe que tem e acabam nos matando.
Eu
Você
É uma relação de mão única
De vez em quando frequento rodas de samba com Janaí­na, outras vezes esqueço um vestido no apartamento luxuoso de algum senhor. Deixa para lá, tento deixar tudo para lá desde que você me deixou aqui. Faz tudo parte da gente, pois então vivamos a vida por viver. Em dias tristes me sento num gramado qualquer para sentir um pedaço de vento e de sol. Meus vestidos de chita secam em bando, mas eu sou uma só, que os visto esporadicamente com luvinhas cafonas de renda. Janaína não sabe sambar, nem eu, mas seguimos muito bem o ritmo que nos é imposto, conduzidas numa valsa estranha, apaixonada, que, sabe-se, nunca vai chegar a lugar nenhum. Eu caminho em dias quentes com o vestido esvoaçante, olhando para o céu, pensando nas ingenuidades que queria ter, na poesia de uma menina do interior. Olha! Eu preciso de cuidados, não entendo nada da vida na cidade! Eu queria ser roubada para alguma cidade praiana que combinasse mais com a ilusão da minha vida.

Izolita

- Não precisa passar minha roupa. Eu já tou de saí­da.
_ Mas vai trabalhar com a roupa assim, amarrotada?
- Passo em casa antes. Não se dê o trabalho. Não quero que passe.
Izolita sempre travava essa mesma discussão com Pedro. E ele teimava em querer agradá-la com essas coisas do cotidiano, que para ela, não faziam sentido.
Pegou a saia amarrotada das mãos de Pedro, vestiu-se, abotoou os botões da camisa branca, calçou seu tênis vermelho. Esperou Pedro entrar no banheiro, deixou um bilhete em cima da escrivaninha e foi-se embora. Izolita fazia esse ritual todas as vezes que dormia na casa de Pedro, esperando ser a última vez. Ele, já acostumado, nem ia mais atrás, embora tivesse medo que de fato fosse a última vez a vê-la. Pedro abriu o bilhete, e dessa vez, diferente dos outros, dizia: "Obrigada!". Até então, todos os outros bilhetes eram: "Até algum dia. A ente se esbarra." O "obrigada" soou, para ele, um tanto melhor. Pedro se questionou então, se Izolita estava mudando.Mas logo parou de pensar.
Izolita seguiu seu rumo. Pegou a chave do carro na bolsa - raramente andava de carro, só quando ia ver Pedro -, olhou para a janela de Pedro, viu que a cortina ainda estava fechada, abriu a porta, entrou no carro, deu a partida, e foi-se embora. sabia que não o veria por meses, e que receberia milhares de cartas dele. Mas não o respondia nunca. No máximo, um bilhete enviado pelas mãos de algum conehcido em comum. Pedro sempre dizia que a amava. Ela respondia que isso era bobagem. Que não havia amor entre eles, só uma profunda amizade. "More comigo uma semana, vamos ver no que dá". "Não, não. Não tenho vontade. Não tenho esse querer integral, Pedro. Já disse. Você me ama, eu não amo você."

quinta-feira, maio 26, 2005

Apresentação

Meu barco navega sozinho por rumos que desconheço, às vezes me sinto à  deriva, às vezes me tomo em remos. Quando encontro outras embarcações é quase sempre um acidente daqueles leves, mas com tons de catástrofe. No meu barco todos os dias são iguais, sempre as mesmas xÃícaras de café, as mesmas lágrimas, os mesmos sorrisos. Minha jangada é pequena, mas entra quem quer, sai quem quer, desde que me deixe um souvenir, uma lembrança qualquer da presença. Todo mundo faz de mim o que quer, porque eu não ligo. Quando me sinto suja tomo um banho de mar, olho as estrelas nesse vai e vem que às vezes enjoa. Eu vivo no mar porque ele balança, e os dias de calmaria me sufocam que quase não aguento. Já encalhei num banco de areia e vivi lá, como se fosse birmanesa. Evito parar em ilhas, esse barco faz uma viagem só, e ela não tem fim.

Saiwalô

segunda-feira, maio 23, 2005

Carta

Virgínia, Izolita, Calamidade, Isolda e Saiwalô,
todas vocês me mal interpretam.
Dizem que eu finjo entender o amor, e que me digo superior. Mas é mentira. Eu não digo que eu entendo o amor. Eu entendo o meu amor. O que eu sinto, e o que eu sou.
Eu entendo de um amor tardio, um amor da entrega, um amor incondicional que é só meu. Um amor do choro, do escorrer pelo cano, do sofrer bonito, que só eu sofro por mim mesma. Entendo de um amor gostoso que me leva por entre as medeixas do chorinho, e me encanta nas rodas de samba. Me encanto por um amor que não deixa vestidos nas casas alheias se não quiser se despir mais vezes. Entendo de um amor que não se rende às lágrimas, até que elas sejam verdadeiras. Entendo de um amor que não é real. É só romântico. Entendo de um amor que é Cecí­lia, às vezes, mas que não queria ser. Eu entendo de um amor que é livre para entender as distâncias e as dores, mas não entende a fuga e o não entregar-se. Entendo de um amor que me preenche e me corrompe me aglutina novamente em mim. Entendo de um amor que é dor, quando longe, que ésaudade imensa. Entendo de um amor que é romântico, mas sadio. Vocês dizem que eu sou muito alheia ao mundo, porém, não é assim. Eu não sou alheia à  ninguém. Nem a mim e nem ao mundo. Eu não visto máscaras do querer corpos. Eu quero corpos! E quero almas! Eu quero corpos e almas entrelaçados numa noite fria buscando confluências nos sonhos sobre feijões e laranjeiras. Eu entendo de um amor que é feito de flores e mangueiras. Que se abre como rosa, em sete dias. Mas que não se desmancha como rosas. Entendo de um amor que é eterno, mas que não poda quereres. Entendo de um amor que se deixa levar, que se deixa atrair. Entendo de um amor que é muito, mas muito mais que sexo. Entendo de um amor que é ver o sol se colocar entre as folhas das ávores.
É esse o amor sobre o qual eu entendo.
Eu não quero um amor Sabina, Tereza ou Tomas.
Não quero o amor fugidio de Sabina, o amor massacrado de Tereza, o amor flutuante de Tomas.
Eu quero mesmo é um amor Adélia Prado.