terça-feira, setembro 27, 2005

Sobre Clementina

Calamidade se despediu de Saiwalô numa cidadezinha cheia de violetas.
- Mande um beijo à Isolda.
Calamidade odeia despedidas.
Andou até um apartamento desconhecido seguindo a dica que a nota amassada no bolso lhe dava. Era um bilhete de tempos. Tocou a campainha, enrolando os dedos nervosos no vestido. A porta se abriu, duas mãos pequenas seguraram o rosto de Calamidade e um beijo leve, impulsivo, escondeu o enorme sorriso que a recebera.
- Pensei que você nunca viesse ao litoral!
Calamidade riu, desconcertada, os cabelos dela continuavam compridos, cacheados, lindos. Era Clementina. Clementina era uma jovem cheia de vida com que Calamidade vivera um romance breve, louco. Elas haviam se conhecido na estrada, Clementina estava indo para casa e Calamidade buscava a capital. Combinaram que iriam juntas, e foram passeios divertidos durante toda a semana. Clementina gostava de puxar Calamidade pelas mãos e descer escadas correndo.
- Você demorou. Quer entrar?
Calamidade viu o pequeno apartamento e o achou aconchegante como Clementina. Não podia ser diferente, pensou, a cama grande, as enormes caixas de som, estantes de livros. Mas o apartamento era diminuto, tão diminuto que estar nele era como estar em Clementina.
- Hah! Acho que você já viu tudo o que havia para ser visto aqui. Vou te mostrar a cidade.
Por um instante Calamidade pensou que ela estava sem jeito, mas Clementina nunca ficava sem jeito. Clementina pegou Calamidade pela mão e correu até o canteiro principal da cidade, levou-a para dançar jazz ao lado do coreto. Calamidade teve vontade de viver a vida ao lado de Clementina, mas sabia, Clementina não era para se viver a vida.
- Fica aqui comigo - disse Clementina, quase soturna.
- Posso ficar um pouco, meu amor... Vamos ver o mar! - completou, correndo na frente da outra.
- Ver o mar? Logo você?
- É, estive viajando de jangada, não sabia?
- Nunca poderia imaginar! - riu.
Terminaram o dia sentadas na areia, olhando menos o oceano do que uma a outra.

quinta-feira, setembro 22, 2005

"às vezes é melhor sorrir do que chorar"

Janaína abriu a caixa de correio de seu apartamento e havia um cartão postal de Isolda. Junto, um pedaço de papel, uma carta singela. Mas não era a letra de Isolda.

E o cartão dizia: Meu bem, encontrei Vinicius na cidade-violeta. Pediu-me para entregar-lhe isto. Mando junto um cartão, de onde estou.

E era uma foto do mar.

Janaína não queria abrir o bilhete. Com alguma relutância, leu: Queria que você estivesse aqui hoje. Sinto saudade. Mas, não te amo. Nem sei se te amei. Senti sua falta. Sinto falta do seu abraço. Não posso te retribuir. Você tem muito, eu tenho medo.

Uma lágrima escorreu de seus olhos e suas pupilas ficaram dilatadas. Daria apra ver direitinho como os seus olhos castanhos eram bonitos. De todas, ela era a única de olhos castanhos. Tão profundos, que diria dar para ver sua alma através deles.

Ligou o rádio e tocava "Melhor assim". E ela pensou: ele se foi, não voltará. "às vezes é melhor chorar do que sorrir. às vezes é melhor sorrir do que chorar"

Secou a lágrima fina que lhe descia pelo queixo e sorriu.

segunda-feira, setembro 19, 2005

Cidade-violeta

Isolda chegou mais cedo àquela cidade ensolarada. Passou no armazém, encontrou Vinicius, um antigo conhecido, novo amor de Janaína, e pediu a ele que trouxesse a ela o melhor vinho tinto que tivesse guardado.

- Vejo que você vai, novamente, correr por aventuras com Saiwalô. A vi passar por aqui essa semana. Disse-me que iriam se encontrar.

- É. Há anos não vejo Saiwalô. A última vez foi memorável e precisamos repetir. A época primaverial ajuda, faz tudo mais bonito. Passar as tardes em alto mar, com esse sol bonito...

- Ten notícia de Janaína? Não a vejo há muito. Fiquei sabendo que voltou para o caixão.

- Janaína se despedaçou, meu bem. Recolhe, em algum canto, seus pedaços. No ar, na terra e na água, em todos os lugares. Recolhe e cola seus pedaços com as lágrimas que você causou.

- Me sinto mal. Janaína é uma garota especial.

- Agora, Vinicius, já não adianta lamentar. O que está feito, assim está. No futuro, resta a nós contornar nossos erros. Mas, não se preocupe. janaína, ao enclausurar-se naquele caixão, só sai quando vale a pena. Ela morre tantas vezes por ano quanto é possível. Ela morre e se refaz. Ressurge, após um tempo, com nova vida.

Apanhou a garrafa de vinho... - Esta é de presente. Diga um alô a Saiwalô. Ela é bastante bonita. Não sei porque nunca atraca em nenhum porto. Ah! E leve este bilhete à Janaína?

Isolda saiu do armazém, que tinha portas e janelas de madeira de cor escura, prateleiras bonitas e bem arrumadas, com um sorriso no rosto. - Sabe, Vinicius, Janaína não gostará de receber bilhetes seus depois de tanto tempo. Entregarei do mesmo jeito. Quanto à Saiwalô.. a vida dela é de vários portos. Ela se atraca em pessoas e corações, não em lugares. Encontrá-la é viver a liberdade.

Passou pela porta e ventou. O vento fez tremer seus vestido florido e levou seu chapéu com uma fita amarrada formando um laço ao lado. Para sua surpresa, quem o segurou foi Rafael. Entregou-lhe o chapéu: as flores de seu vestido são muito bonitas. - São violetas. - Ah!, sim. Vejo que encontrará Saiwalô. Ela também veste um vestido com violetas. Para combinar com as flores da cidade.

A cidade toda tinha violetas roxas nas janelas das casas.

sexta-feira, setembro 16, 2005

Virgínia descobre o segredo dos amores platônicos

E vive os mais belos romances na mais pura solidão.

domingo, setembro 11, 2005

Primavera

Saiwalô olhou para cima e viu uma gaivota, já estou perto da costa?, pensou. Sempre acreditara que as aves são um sinal de boa ventura, e devem ser mesmo, porque não muito depois Saiwalô teve sua viagem interrompida por uma mensagem numa garrafa. Era Isolda, que queria se juntar a ela, tirar férias, talvez ver os festivais. Pegou sua pena e rapidamente se pôs a responder.

Isolda,
Fiquei muito feliz com a sua mensagem, você nem sabe o quanto. Já é quase primavera e eu quero ir aos festivais ver as bancas de flores, ir aos morros da costa e correr pela relva fresca. Não ligue para Marcelo, ele sabe que é amado. Jonas, o menino da baleia, também não gosta das minhas viagens, às vezes penso em me mudar para dentro da baleia com ele, mas acho que não conseguiria. Bom mesmo seria se ele viesse morar na minha jangada. Não importa. Espero você na cidadezinha de sempre, ao lado das violetas, lembra? Vamos primaveirar junto das cigarras.
Aguardo
Saiwalô

Deu a carta à uma outra gaivota qualquer, para que as asas levassem felicidade à Isolda.

quarta-feira, setembro 07, 2005

Dos amores velhos

Rafael,

sei que há tempos não nos vemos. Há muito você não atende meus telefonemas... fiquei sabendo que tens um novo amor. Bom saber que está bem. A vida dá voltas e mais voltas. Gostei da capa que você fez para a revista. Muito bom trabalho! Sempre te disse que tens talento. Passarei pela sua cidade, pensei em nos vermos. O que acha? Tirei folga e vou procurar Saiwalô pelos cantos do mundo e conhecer novas praias. De qualquer forma, uma pausa para nos vermos não seria desagradável. Achei seus cadernos de poesia aqui... Marcelo quer que eu os devolva. Não tenho certeza se você os quer de volta. Lembro de uma vez que você me disse, com os olhos cheios de lágrimas, que tudo o que estava escrito neles era eu. Não queria me devolver. Sempre soube, Rafael, que eu sou eu e não sou de ninguém. Devolver-me seria me condenar a ser sua... como os cadernos. E nem eu, nem você, gostaríamos dessa prisão. Soube do acidente de carro que você sofreu. Pena. O carro era bonito. Fico feliz por ter saído ileso. Me machucaria o mundo perder-te.

De qualquer forma, Rafael, gostaria de colocar a conversa em dia. Olhar para você. Aproveitar que o tempo me urge um descanço.

Bons dias...

Isolda.

terça-feira, setembro 06, 2005

com urgência, para Saiwalô

Saiwalô, meu bem...
Não sei em que porto andas. Logo hoje, que tirei um folga e queria te ver. Fiz minhas malas e vou viajar. Marcelo não ficou contente, como na maioria das coisas. Amo-o, mas, nunca vi pessoa mais possessiva. Sabe que o amo, mas não adianta! Sempre é paranóico. Às vezes, quero desistir desse amor que tenta me podar. Não serei outra por ele, você sabe.

Entretanto, não é isto que vem ao caso. Andei te procurando, meu bem. Queria te visitar em sua nau, te ajudar a procurar suas baleias. A última vez foi bem divertida, embora suas lágrimas fossem muitas, causando tempestade em alto mar. Não importa, não importa, passar noites de trovoada ao seu lado foi inesquecível.

Não sei se está atracada num porto qualquer ou se já está na caça nesta época quase primaveril. Mas, se receber esta, Saiwalô, pare por aqui. Embarco minhas malas e eu, e passaremos a primavera cortando flores de papel.

Carinho,
Isolda.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Destino: Virgínia

Virgínia,
eu sempre abraço a falta, é verdade. Mas, nos dias que se passaram, eu tentei sair de meu casulo. Eu tentei parar de me entregar somente a mim mesma e seguir os conselhos de Isolda. Deixei Pedro, já que ele só sofria comigo, e fui cativada por um ser de longe. Ele largou tudo por um minuto para ser meu, e eu larguei tudo por um minuto para ser dele. Só que, meu bem, eu não nasci para isso. Em duas horas longe, senti que era a falta a que me completava. E estar nos braços de alguém por mais de uma noite me fez chorar. E eu voltei com as mãos vazias. Sequer trouxe as malas. Voltei para encontrar com a solidão, com minha vida e com nossas cervejas geladas. Hoje seria um bom dia, aliás, já que está um calor insuportável dentro da minha casa.

Sabe, Virgínia, eu me machuco com a solidão a cada segundo. Ela me sufoca, me mata. Porém, é para ela que eu volto nas noites de sexta. É na companhia da minha dor que passo as horas. Eu sou incompleta, mas, quando posso me completar, escolho meu canto, minhas lágrimas, meu banho longo.

Eu queria ser como você e Janaína. São dois amores sublimes.

Beijos de quem te queria aqui, agora.

Izolita.

Para Izolita

Querida Izolita,
Como vai? Hoje me deu saudade das nossas cervejas no chão de brita, de falar dos garçons-simpatia que intentam roubar o lugar dos nossos garçons favoritos. Hoje queria largar tudo e tomar um vinho no parque, compilar nossas memórias em livros. Hoje escolhi a falta, querida, que nem você. Estou meio farta de amores tangíveis. Sabe, Izolita, eu te invejo por ter para onde correr, ainda que seja falta, invejo não poder fugir de tudo num domingo e me abrigar em braços distantes, mas eu não tenho braços distantes. Às vezes me pergunto: aonde estará o meu amor? Em Adriano? Não sei. Talvez passeie por campos distantes, na África, olhando os guepardos. Talvez no Rio de Janeiro. Só sei que meu amor não é taoísta, ou quem sabe seja? Acho que queria mesmo é viver solidão, em todos os poros, porque acho que devia me chamar Solitude. Ai, Izolita, essa incompletude é que me mata! Queria muito poder dizer "queria tanto te ver!" e ouvir um "eu também". Queria receber um telefonema que dissesse "vou passar aí só para te dar um beijo, porque sinto sua falta". Acho que queria que Adriano fosse presença, mas não é. Tenho vontade de escrever cartas como bíblias e tomar cervejas geladas. Hoje queria fingir que não existo, fazer-me ficção em longas páginas de histórias fantásticas e chorar lágrimas vazias, sem significado, sem motivo. "Find some beautiful place to get lost". É, queria poder te encontrar esta tarde.
Mil beijos, minha querida.
Virgínia

Calamidade e Virgínia

As duas queriam mesmo era ser Saiwalô.

4 estações

Virgínia escrevia uma carta para Izolita.
Saiwalô procurava a baleia em todos os confins oceânicos.
Calamidade permanecia catatônica em frente à praia.
E em algum lugar um casal de idosos passeava de mãos dadas, e de dentro de algum carro era possível ouvir cocaine blues.